13/03/2017

Territórios não mapeados


Acabo de voltar dos EUA das primeiras semanas da era Trump. Conversei com muitos americanos, inclusive Al Gore, meus amigos Ken Berlin, Mario Molina, Emma Torres a turma dos bancos multilaterais, em Washington, a turma da ONU, em Nova York. A verdade é que ninguém sabe o que vai acontecer e há quem tema o pior:  uma permanência mais duradoura de Trump com sério risco para a democracia norte-americana. A tradicional revista The Atlantic descreve um cenário assim como sendo plausível.  

 Donald Trump herdou uma economia em franca expansão, espetacularmente recuperada pela ação neo-keynesiana de Obama. Uma situação de virtual pleno-emprego. É claro que a recuperação não beneficiou a todos igualmente. Os salários só começaram a subir mais recentemente. 

 E aconteceu algo que pouca gente imaginava durante campanha eleitoral: uma boa economia virou passe livre para uma assustadora experiência populista de direita.

A sabedoria convencional parecia indicar  que uma economia recuperada favoreceria os democratas, que haveria um reconhecimento da performance do primeiro presidente negro. A recuperação econômica,   inclusive, era bem mais evidente, em 2016, do que quando Obama foi reeleito, em 2012.  

Paradoxalmente essa segurança  na recuperação,   pode ter levado um segmento decisivo dos eleitores brancos, pouco instruídos e sensíveis a pulsões xenófobas a um voto “audaz”, ganancioso: apostar nos possíveis ganhos imediatos das (contraditórias) promessas de Trump: uma redução drástica de impostos, –particularmente para os ricos que ao consumir e investir dinamizariam a economia, conforme reza o duvidoso credo republicano — mais gastos militares e desregulamentação dos combustíveis fósseis, carvão e petróleo e, sobretudo, um trilhão de investimento em infraestrutura. 

O último ponto era algo que os democratas queriam fazer mas os republicanos, os guardiões das contas públicas, não deixavam. O combate ao déficit público e a ideia de um orçamento equilibrado que foram, durante os anos Obama, um leitmotiv obsessivo do discurso econômico republicano, em particular daquele pequeno pulha tão celebrado pela grande mídia, o deputado Paul Ryan.  Mas qual déficit que nada!  Já não fala mais nisso.  Enormes déficits estão sendo docemente entubados pelas vestais do equilíbrio macroeconômico. Como na era Bush mas ainda pior...

 Caminhamos para uma explosão monumental do déficit público norte-americano que no  curto prazo vai dopar    a economia americana em moldes que, curiosamente,  lembram o “momento Dilma”  da economia brasileira. Por isso é improvável que a economia traga maiores embaraços políticos para Trump, no curto prazo e poderá ate ganhar eleições por conta disso.  A trolha certamente virá mais a frente mas até lá muita coisa pode acontecer. 

Parece seguro imaginar que a economia não será o ponto fraco de Trump, a curto prazo.

Ele terá problemas maiores noutras searas. O crime que os republicanos estão prestes a  perpetrar contra o Obamacare deixando sem seguro-saúde, nos próximos anos,   milhões de pobres americanos --muitos deles eleitores de Trump--  será certamente fator de desgaste. Também o serão as investigações dos promíscuos laços de grana, de longa data,  de Trump com a cleptocracia russa. Ali tem coisa cabeluda e  ela tende a se escancarar, mais cedo ou mais tarde. 

 Na questão ambiental e climática o retrocesso já é dramático. Ataque à regulação, à eficiência energética, forte estímulo a queimar mais carvão, diesel e combustíveis fósseis em geral. A regulação nos estados governados por republicano vai nesse sentido: Montana proibiu as eólicas de se conectarem as redes. Vários outros estados cogitam sobretaxar os carros elétricos. Por aí vai. O Al Gore acredita que a dinâmica das energias limpas é irreversível: o solar oferece mais empregos que o carvão, as eólicas se generalizam em estados governados por republicanos, como o Texas. Tentar voltar ao tempo do carvão-rei e dos grandes carrões parece fora de época. Mas...

Embora chocante a politica de Trump a essas alturas bastante clara: nenhuma inflexão rumo ao centro, prioridade absoluta para manter seu bloco eleitoral emocionalmente contemplado com ele  “cumprindo suas promessas” ou, pelo menos,  aparentando fazer o possível para. 

A desmoralização das instituições e de qualquer autoridade moral: a verdade objetiva dos fatos, os juízes, as regras de convivência democráticas estão sendo submetidos a uma estridente  algazarra de sucessivas mentiras (ou “fatos alternativos”) num ritmo tão alucinante que qualquer apuração ou desmentido factual vai se tornando pouco audível ou anacrônico.

Trump assume claramente que tem uma minoria de uns 40% da população e que uns 50% não o aceitam nem irão fazê-lo. Aposta na desmoralização, desmobilização, passividade desse bloco majoritário das grandes cidades e que faz girar o essencial da economia norte-americana. Aposta que conseguirá ir se segurando com um apoio fanatizado de uma maioria de brancos de baixa classe média, das cidades  menores,  distantes dos grandes centros litorâneos. Com o firme apoio da plutocracia republicana de seu establishment político que termina por ter relaxado e aproveitado seu estupro, pela Fox News e pelos audaciosos esquemas de internet criados por seus seguidores nessa era de pós-verdade.

Ele é favorecido por circunstâncias e regras políticas: os republicanos controlam a grande maioria dos estados e redesenharam os distritos eleitorais para a Câmara a seu favor. Em 2018, a grande maioria das vagas em disputa no Senado é de democratas. Os democratas apresentaram grandes lideranças políticas nas recentes décadas: Obama, Bill Clinton, John Kerry, Al Gore mas desses apenas os dois primeiros mostraram talento para  vencer eleições. A capilaridade dos democratas deixou a desejar e seu grau de divisão felicitou a vida dois republicanos mais de uma vez. 


 Admitamos, a esquerda norte-americana é uma das mais burras do mundo. Aquele slogan “Bernie or Bust” (refrão das últimas primárias que significava “Bernie Sanders ou foda-se”) pode ter tido seu papel na derrota de Hillary, embora ela não fosse uma boa candidata. 

 De qualquer modo há uma interminável lista de sandices que a esquerda norte-americana aprontou  nas últimas décadas e que ajudou sobremaneira os republicanos. A candidatura de Ralph Nader, em 2000. Bush tonou-se presidente com 500 mil votos a menos por conta disso. Agora Trump repete a façanha com quase 3 milhões, a menos. 

  E temos essa ladainha do “politicamente correto” uma das mais deletérias invenções dessa esquerda. Algumas dessas idiotices acabaram arribando por aqui e sendo adotadas pelos radicais  daqui. A mais recente é essa sesquipedal imbecilidade da “apropriação cultural”:  peças de vestuário  viram propriedade intransferível de uma comunidade racial ou cultural! 

 É difícil imaginar algo mais reacionário, mais ao gosto de Trump. O progressismo sempre foi a geleia geral, o mistureba, a multi-apropriação mútua do melhor das muitas culturas, o multiculturalismo militante. Então fazer de um turbante ou de um quimono apanágio  de negros ou de japoneses é de fato o fim da picada.  Mas  picada essa que tem ponto de partida bem identificado: vem dali,  do “politicamente correto” gestado pela  mais burra esquerda  norte-americana...


 Mas voltemos  a quem se deu bem nessa quadra da história o inacreditável Donald. Os EUA chafurdam agora  num terreno inexplorado, vivem um experimento para o qual a ciência política ainda carece de régua e compasso. Uma bizarrice fascistóide da era onanodigital. 

 É plausível se supor que qualquer dia desses a casa caia. A questão é quando isso vai acontecer e o preço a se pagar.  Pode demorar a depenada e des-topetada do patusco Donald.

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