21/03/2018

Fim da polícia de "bico"


O fato dos nosso policiais militares trabalharem duas vezes por semana e civis, uma,  é antigo e condiciona estruturalmente a qualidade de seu trabalho ao torna-lo intermitente, pouco focado, com enquadramento disciplinar difícil e pouca oportunidade para um treinamento e adestramento permanente. O "bico" na verdade acaba sendo a atividade policial. Cria uma dicotomia acentuada entre o contingente nominal e o real, todos os dias na rua para proteger a sociedade e investigar crimes. Obedece a uma cultura arraigada e corresponde a uma tipo de gasto público insuficiente e ineficaz. Seu resultado é uma policia de má qualidade, altamente vulnerável não apenas à corrupção como à criminalização com uma "banda podre" praticamente incontrolável. 

É positivo a intervenção na segurança do Rio estar refletindo a respeito da chamada “escala de serviço” de 24 horas de plantão por 48 ou 72 de (suposta) folga, na PM e na polícia civil, respectivamente. Embora profundamente enraizada na cultura funcional vigente trata-se de uma aberração. Enquanto ela existir nunca teremos polícias de qualidade. 

 Seu trabalho é descontínuo, sem uma rotina que favoreça  melhor enquadramento, adestramento e disciplina. Propicia não o descanso mas uma  segunda atividade remunerada que tende se tornar predominante em ganho econômico e investimento de energia. Pode não ser compatível com a segurança pública e, objetivamente,  nutrir-se da precariedade desta. No caso da chamada  “banda podre”, o tempo de folga é dedicado às articulações criminosas.  Mais de 70% das mortes de policiais ocorram em dias de folga. Não é por acaso.

 As vantagens de um regime de dedicação exclusiva saltam aos olhos: um aumento imediato de contingente, um controle maior da instituição sobre o cotidiano de seus quadros, possibilidade de adestramento e formação permanente, continuidade no trabalho investigatório, mais especialização.  

 Gosto de lembrar o caso de Bogotá, onde a criminalidade violenta foi reduzida em 50% em uma década. Bogotá, com sete milhões de habitantes, é  maior que o Rio. A Polícia Nacional dispõe de 16 mil homens com dedicação exclusiva.  Ficam aquartelados. Ocupam efetivamente o território da cidade: estão em toda parte patrulhando a pé, em grupos de três, com fuzil metralhadora e um bom sistema de comunicação. A viatura é utilizada como apoio.   Não existe controle territorial de comunidades por bandidos senhores-de-guerra.

No estado do Rio, quantos dos 45 mil policias militares estão efetivamente nas ruas todos os dias? Além das folgas é preciso contar o número assustador de policiais de licença, cedidos para outros órgãos e instituições, etc. O efetivo disponível no dia a dia é absurdamente insuficiente e o patrulhamento só em viatura deficiente na prevenção. Ela passa com seu guardinha de olho grudado no smart phone combinando o serviço que vai fazer nos dois dias seguintes no supermercado e na proteção do rapaz que vai  ao banco pegar o pagamento da turma daquela obra. Acaba  de chegar o WhatsApp do taxista que quer lhe vender a autonomia. E a viatura passa. Esse guardinha é do bem. 

 Na outra viatura outro PM está esperando a mensagem dos "manos" marcando para o dia seguinte da folga o encontro no morro pra levar aquela Uzi. Estão preparando um bote na outra facção e aí vai mudar o arreglo. Ou quem sabe vai trabalhar com o outro colega da "milícia" que está controlando o gás e os motoboys. Ai vai ter que passar o cerol nos manos. Dilemas mas novas oportunidades...

  É uma vida dupla. Segunda-feira temos o coronel comandante do batalhão e o soldado. Na terça as pessoas são as mesmas mas os personagens não mais, é o empresário da segurança privada e seu empregado informal. Um dia comandante/soldado, no outro patrão/empregado. A segurança privada compensa a insegurança mas necessita para existir da má qualidade da segurança pública. 

 Uma polícia de qualidade dificilmente será possível sem dedicação exclusiva com o policial enquadrado numa rotina e a corporação controlando o essencial do seu tempo.  Fora de operação, o policial fica ocupado pelo adestramento permanente,  treinamento,  preparo físico com tempo de folga condizente com o do serviço público, levando em conta no horário certas excepcionalidades da atuação policial. 

A instituição de uma verdadeira  dedicação exclusiva tem dois grandes óbices:  o orçamentário:  terão que ser pagos realmente bons salários e o cultural-corporatista: a escala de serviço é hoje hábito muito arraigado, um modo de vida. 

No entanto, se a sociedade exige uma boa polícia precisa entender que ela custa caro. O governo federal, este ou o próximo,  terá que enfrentar a questão de como financia-la decentemente e eficientemente. Quanto à mudança  cultural/corporativa nas policias,  poderia instituir-se uma fase de transição com a coexistência dos dois regimes de serviço mas um nítido favorecimento, em termos salariais e de prestígio  para os que optarem pela dedicação exclusiva: promoções, cursos, financiamento de casa própria, etc.  Seria também uma ocasião para filtrar o trigo do joio e expurgar as corporações via corregedorias realmente ativas. Vai haver uma resistencia enorme daqueles oficiais que nas suas  48 ou 72 horas de "descanso" são donos de empresas de segurança privadas. A transição dar-lhe-a tempo para optarem entre a corporação ou o business. Não são compatíveis no serviço ativo.

 Evidentemente o estado do Rio não teria --muito menos agora--  como financiar sozinho  algo assim. Já examinei essa questão, anos atrás,  com o falecido André Urani e o Leandro Piquet, nossa ideia, na época,  era uma loteria para bancar um fundo federal de complementação salarial para os policiais, de dedicação exclusiva, nos moldes daquele da educação. 

 Mexer com isso é muito difícil mas aí está o nó górdio a ser cortado para que possa existir policias de qualidade com  disciplina, enquadramento  e eficiência. Nas quais a hierarquia tem controle real sobre o efetivo. É também o primeiro passo para termos polícias respeitadoras do cidadão e respeitadas.

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