17/03/2018

Marielle e a grande provocação


Passados dois dias, os contornos do assassinado de Marielle Franco começam a se delinear melhor. Em relação as hipóteses que levantei, no no blog anterior,  algumas  perdem força, outras ganham tração.  Debilita-se aquela que remete ao episódio da juíza Patricia Acioly, a da animosidade individualizada. Marielle, embora ativa na denúncia de situações envolvendo a PM em favelas e, recentemente,  o Batalhão de Acari, não individualizava suas denuncias nem elas haviam produzido consequências como a da prisão algum PM ou miliciano que pudesse ter resultado em retaliação.   Ela não entretinha animosidades nem sofria ameaças específicas.

  A outra possibilidade era a de um raro crime ideológico partindo de alguma flamante organização fascista e racista formada no bojo do atual emergência da extrema direita sobretudo nas redes sociais. Tipo  Aurora Dourada, na Grécia. Um crime dessa origem, no entanto,  teria sido reivindicado o que não foi o caso.

 A hipótese que para mim passa a ser a mais provável é a do crime instrumental: uma provocação, com objetivos políticos bem definidos –desgastar a intervenção federal na segurança fluminense--  cuja escolha de alvo obviamente revela como pano de fundo componentes racistas, ideológicos e de ressentimento social. O alvo escolhido foi uma negra, bonita, bissexual, pobre, favelada e que transcendeu sua condição social e tornou-se pessoa importante passando a utilizar dessa condição para ousar criticar policiais. 

 Qualquer pessoa que já tenha conversado com um certo tipo de PM conhece esse  sentimento de  ódio da favela e de seus moradores, indiscriminadamente. Para esse tipo de policial ela era “defensora de bandidos”, como tuita uma desembargadora  que aparece na coluna do Anselmo Goes acusando-a de ligações com o Comando Vermelho. 

 Ligações? Qualquer liderança política ou gestor público que atue numa favela controlada territorialmente pelo tráfico acaba tendo algum contato com aqueles jovens armados. Depois, quando aparecem mortos no valão, pode protestar e defender aquilo que parte da sociedade chama de “os direitos humanos dos bandidos” em contraposição com os das pessoas de bem, como se  direitos elementares  devidos a qualquer ser humano pudessem ser subdivididos por merecimento. Não entendem que coibir a tortura e a execução sumária, garantir o devido processo legal protege em primeiro lugar os inocentes.

   É bem verdade que há um tipo de discurso de esquerda que tende a colocar a bandidagem  como “vítima da sociedade”. O Hélio Oiticica criou aquela imagem, na minha opinião muito perniciosa, do “seja marginal, seja herói” e flertou com a noção do "bandido social", algo que não existe. Para mim,  o narcovarejo é uma ditadura militar, local, que se impõe a uma comunidade. É uma força essencialmente opressora. Do mal. 

 No dia a dia das relações sociais, numa favela, tudo isso é muito complicado sobretudo quando muitos inocentes caem vítimas do gatilho fácil num contexto de promiscuidade do tráfico com os  policiais do “arreglo”. A morte é parte da equação comercial. O traficante é morto porque não pagou, o policial é morto porque está querendo favorecer a facção rival. Inocentes são confundidos e mortos. Balas perdidas matam outros inocentes. Nesse contexto, lideranças como Marielle se posicionam sistematicamente contra essas mortes, muitas delas execuções. Posso discordar de algumas de suas avaliações políticas  mas ela tinha esse direito que constitui um contrapeso fundamental numa democracia.

 Voltando a sua execução, com um lote de balas 9 mm desviado da Polícia Federal e usado em crimes de extermínio com envolvimento policial, noutras cidades. Há uma forte probabilidade dela ter sido cometida por policiais ou "milicianos" a eles associados que alimentavam esse sentimento de ódio contra aquela “favelada” que virou líder política, parlamentar, em suma,  “doutora”.

  Mas o motivo principal não deve ter sido simplesmente esse ódio mas um cálculo instrumental. Aparenta ser uma provocação contra a intervenção federal. Pode ter  relação com o desbaratamento, dias antes, de uma dessas mal chamadas “milícias” e com o receio de que a intervenção, com base na inteligência militar e da Polícia Federal,  vá promover devassas na chamada “banda podre” das policias e na turma do arreglo que hoje reinam soberanas. Cada barão no seu baronato.  

 Nesse caso, os assassinos parecem demostrar um sentido tático e uma esperteza política arrepiantes.  Ao escolherem seu alvo sabem que  repercussão na grande mídia dessa morte, magnificaria o posicionamento de oposição à intervenção. A partir daí, desmoraliza-la fica mais fácil. O tratamento emotivo, apelativo da grande mídia ajuda. Pavlovianamente,  a coisa vira um “fora Temer”,  como se Marielle  tivesse sido vítima da própria intervenção federal. Ouve-se até de petistas que  "os assassinos foram os mesmos que promoveram o impeachment da Dilma”. 

  Ao tomar esse caminho a companheirada corre o risco de estilhaçar a grande unidade que se criou no momento seguinte ao crime. A maioria dos cariocas embora desconfiada, alerta, não é contrária, nesse momento,  à intervenção –ruim com ela, pior, sem--  e torce para que   dê certo de algum modoJá os “anti-sistema”,  reconfortados no seu radicalismo pelo martírio,  enveredam por um discurso que pulveriza, tribaliza, desune e, sobretudo, tende a minar qualquer autoridade. 

 A completa desmoralização e esvaziamento da autoridade está no fulcro do nosso drama. A cleptocracia cabralina e o alienismo funcional do atual prefeito deixaram o Rio  acéfalo. O governo federal é mal visto no contexto da Lava Jato e do Fora Temer. A intervenção comandada por oficiais sem rabo preso como o arreglo e os interesses corporativos que minam nossas polícias,   até agora,  teve um comportamento sensato. Merece  o beneficio da dúvida e o respeito pela sua autoridade. Em matéria de segurança é o que temos, no momento. 

  Maquivelicamente, os assassinos contrapõem a esse relativo apoio da população a minoria ativista, emotiva,  eletrocutada pelo crime. A grande mídia cai na armadilha e multiplica essa emoção. Isso por sua vez provoca a reação conservadora de quem acredita que muitas outras vítimas da violência --inclusive policiais-- estão sendo "esquecidos". Passa a  reinar ainda mais a divisão, a tribalização e a entropia numa sociedade sem rumo ou esperança. Caldo de cultura para as piores saídas políticas, só olhar em volta pelo mundo afora.


 O interesse das “milícias”, do arreglo, das facções do tráfico, da corrução policial é uma só, convergente e coerente:  reduzir qualquer autoridade ao “valor Pezão”, ou seja a zero. Assim fica garantida sua autoridade total onde lhes interessa: os territórios nos quais exercem sua ditadura armada,  localizada: a  favela, o conjunto habitacional, o bairro, em toda uma área da cidade, reservas de mercado a serem exploradas e/ou “tributadas” de alguma forma. 

Isso tem nome: "a sídrome dos estados falidos". É a “somalização” do Rio de Janeiro. Esse foi com grande probabilidade o objetivo estratégico dos assassinos de Marielle Franco. O móvel do crime, o motivo da provocação. Vamos cair nessa?

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